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Compreendendo o princípio da transferência no Treinamento MultiFuncional

Colunista: Mauro Guiselini

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Mudanças e tendências nos programas de treinamento

Nos últimos anos, temos visto o surgimento de novas modalidades de exercícios, propostas de treinamento, acessórios e equipamentos, uma redescoberta de antigos acessórios – Kettlebell, medicinebol, caixas de saltos, cordas, pneus, barras e anilhas – e uma tecnologia muito avançada – telas de plasma nas esteiras, bicicletas, programas computadorizados que elaboram e memorizam treinamentos específicos, acesso a internet durante o treinamento! (GUISELINI e GUISELINI, 2016)

O rápido desenvolvimento das máquinas computadorizadas utilizadas nos programas de condicionamento físico das academias, clubes e centros esportivos têm agora, como concorrente ou aliado, dependendo da filosofia de trabalho do profissional que prescreve treinamento, acessórios e aparelhos de construção muito simples e “funcionais”.

Os clássicos métodos de treinamento, tradicionais no esporte de alto rendimento, são utilizados como as principais estratégias para conseguir, de forma rápida, um excelente condicionamento físico, diminuir a gordura corporal, aumentar a massa muscular – o treinamento intervalado anaeróbio alático, lático e aeróbio – agora repaginado com o nome HIIT  e o circuit training com acessórios e aparelhos simples, de fácil construção, são os métodos de treinamento preferidos pelos adeptos do treinamento funcional.

Figura 1. A evolução da medicine ball

Tendências do fitness para 2022

Treinar de forma similar ao mundo real de movimento – atividades cotidianas, esportes, lutas, artes marciais e dança, de acordo com Guiselini e Guiselini, (2016), é a principal proposta das modalidades de exercícios consideradas “funcionais ou multifuncionais”.

Treinar o corpo de forma global, priorizando o movimento e não um grupo muscular de forma isolada, como se fosse possível isolar um músculo durante um determinado exercício – os exercícios multicomponentes – que integram várias capacidades motoras, ocupam lugar de destaque em várias propostas metodológicas.

Apesar dessas mudanças, o treinamento com foco na força – musculação ou exercício resistido (dependendo do autor) continua sendo uma das modalidades mais práticas, muito embora não apareça de forma explícitas nas tendências do fitness para 2022 do ACSM. Essas tendências têm servido de orientação para a escolha das modalidades de exercícios por parte de personal trainers e academias.

Compreendendo o Princípio da Especificidade

Uma das tendências do fitness para 2022 é o Treinamento Funcional; porém observamos que, em muitas situações práticas, a escolha dos denominados exercícios funcionais parece não estar de acordo com um dos princípios do treinamento físico, o da especificidade.

Compreender a aplicação do Princípio da Especificidade é, portanto, fundamental para a elaboração das sessões de treinamento funcional inclusive para caracterizar o seu pressuposto básico: a funcionalidade.

Este princípio é baseado no fato de que as maiores mudanças funcionais e morfológicas durante o treinamento acontecem somente nos órgãos, nas células e nas estruturas intracelulares que são responsáveis pelo movimento (Volkov, 1975). Um treinamento específico tem efeitos específicos sobre o organismo, ou seja, o organismo sempre se adapta de modo específico ao que lhe for oferecido (Guiselini e Guiselini, 2016).

A adaptação do organismo sempre se faz de acordo com o estímulo a que ele foi submetido. É chamado da lei da qualidade do treinamento. Por isso, a prática de uma atividade física produzirá uma adaptação do organismo que será específica para esta atividade – uma pessoa que corre produzirá no organismo uma adaptação para correr; uma que nada, terá adaptação para nadar; outra que joga futebol terá adaptação para jogar futebol, e assim por diante. Essas atividades não são intercambiáveis. (Barbanti, 2010).

Transferência do treinamento

Se você toca violão, não adianta treinar tocar piano para melhorar o seu desempenho no violão, muito embora a sua capacidade musical para ler a partitura, conhecer os diferentes andamentos, memória, sensibilidade, criatividade, improvisação é utilizada tanto para tocar violão ou piano.

De acordo com Barbanti (1977), os efeitos do treinamento são específicos para as partes e sistemas corporais solicitados. Isso quer dizer que se realizarmos um treinamento de força, os efeitos produzidos serão diferentes dos efeitos produzidos pelo treinamento de resistência.

Isto é válido não só para as capacidades biomotoras, mas também para as atividades. Um treinamento para corrida de longa distância tem outros efeitos do que um para natação ou ciclismo, ainda que todas essas atividades sejam de resistência e tenham o mesmo componente metabólico predominante, porém as “a habilidades motoras são específicas” (BARBANTI, 1977)

A correta aplicação do princípio da especificidade tem ainda a vantagem de que os mecanismos neurais envolvidos são desenvolvidos, contribuindo para a utilização da força na execução correta do movimento, assim definida pelo esquema de inervação muscular específico da técnica.

Relacionado a este princípio está o fenômeno da “transferência do treino”, cuja essência diz que a capacidade funcional aumentada durante o treinamento em um exercício pode aparecer em outro exercício.

No caso dos esportes, lutas, artes marciais e dança, é importante analisar as ações motoras, ou seja, nas modalidades caracterizadas por ações cíclicas (andar, correr, pedalar, nadar, patinar), a especificidade reside na distância da prova e na velocidade durante a prova (GUISELINI e GUISELINI, 2016).

Quando as modalidades se caracterizam por movimentos acíclicos (ginástica artística, tênis, futebol, basquetebol, voleibol, handebol, futsal, boxe, dança etc.), a especificidade é mais complexa e depende de um processo analítico das situações distintas e variadas que ocorrem. Nesse caso, é preciso analisar as situações técnicas e as exigências energéticas distintas de cada modalidade esportiva.

O mesmo ocorre quando o princípio da especificidade é utilizado no treinamento multifuncional/funcional que é aplicado para alunos comuns, sem pretensões de alto desempenho, como por exemplo, para indivíduos sedentários, idosos, cujo objetivo, entre outros, é melhorar as habilidades motoras funcionais e capacidades biomotoras utilizadas nas atividades básicas da vida diária (GUISELINI e GUISELINI, 2016).

O que é transferido: habilidade ou capacidade?

A habilidade motora funcional agachamento utilizada durante a aula é similar a situações cotidianas, tais como, sentar e levantar da cadeira ou sofá, agachar para pegar objetos. Realizar 2 ou 3 séries de 12 a 15 repetições do agachamento com o peso do próprio corpo, propicia a melhoria da força muscular, estabilidade, mobilidade, coordenação motora e consciência corporal, importantes capacidades biomotoras e, ao mesmo tempo, aperfeiçoa a habilidade de agachar.

O mesmo ocorre com o exercício “stiff”, movimento de flexão da coluna lombar e quadril, excelente para fortalecer os músculos extensores da coluna lombar e posteriores de coxa e glúteos, propiciando uma boa estabilidade da coluna, necessária para atividades cotidianas, como por exemplo, arrumar a cama.

Figura 2. Arrumar a cama e stiff: ocorre a transferência?

No Treinamento MultiFuncional/Funcional o princípio da especificidade é aplicado, considerando, para tanto, a similaridade entre as habilidades motoras funcionais praticadas com as habilidades motoras cotidianas ou esportivas (mundo real) que se pretende melhorar; isto ocorrendo, maior será a transferência para a nova situação.

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É importante ressaltar que, conforme as teorias de aprendizagem motora, quanto maior for a similaridade entre as habilidades motoras, maior será a transferência para a nova situação. O que observamos, na prática, é que ocorre a transferência das capacidades biomotoras, pois as habilidades motoras específicas, como o próprio nome diz, são “específicas”: o salto em altura, o jump no basquetebol, a cortada no voleibol, forehand no tênis, chute voleio no futebol, nado costa, levantamento de peso olímpico, mortal com reversão na ginástica olímpica são habilidades motoras beneficiadas com o treinamento funcional?

Conclusão: a transferência ocorre!

Considerando que as habilidades motoras multifuncionais globais, multiplanares, multiarticulares – correr, saltar, agachar, avançar, puxar, empurrar, saltar – ajudam a desenvolver as capacidades biomotoras equilíbrio, mobilidade, estabilidade, força, potência, velocidade, coordenação motora, consciência corporal, agilidade, necessárias para a realização das habilidades motoras, podemos considerar que as capacidades são “transferidas” porém não se esquecendo que as habilidades motoras têm a sua especificidade  (GUISELINI e GUISELINI, 2016).

O levantamento terra é “igual ao levantamento terra”, o mesmo acontecendo com o agachamento back hand, supino reto no banco ou agachamento afundo: eles são iguais às habilidades motoras cotidianas ou esportivas?

No dia a dia, não realizamos alguma habilidade motora na posição deitada, sobre um banco, fazendo flexões e extensões de cotovelos: ficamos em pé, empurramos objetos!

No entanto, essas habilidades motoras, específicas da musculação são utilizadas por pessoas comuns, com objetivos de emagrecimento, fortalecimento muscular, aumento da massa muscular e performance esportiva – jogadores de voleibol, basquetebol, futebol, porém, durante o jogo, não existe situação similar aos movimentos realizados: agachar com a barra nas costas, pegar uma barra no chão e levantar.

Figura 3. Treinamento Multifuncional especificidade e transferência positiva

Precisamos analisar, portanto, de forma muito precisa, para afirmar que treinar determinada habilidade ajudará a melhorar outras. Lembre-se, porém, que quanto mais similar forem, maior será a transferência para a nova situação. As capacidades motoras desenvolvidas – resistência de força, coordenação motora, consciência corporal, estabilidade, mobilidade – são sim, utilizadas em novas situações, porém de forma específica, de acordo com a habilidade motora a ser praticada.

Figura 4. Exercício Jump Squat

A potência de membros inferiores é uma capacidade biomotora necessária para a realização ótima de inúmeras habilidades motoras esportivas: jump no basquetebol, cortada no voleibol, salto/cabeceio no futebol, salto em altura, entre outras inúmeras habilidades. O Jump Squat é um excelente exercício para desenvolver a potência de membros inferiores, porém a sua execução é muito diferente das habilidades esportivas citadas.

Fica aí a situação prática para você, caro leitor, analisar a questão da transferência de movimento e a eficácia do treinamento funcional nessas situações.

Referências Bibliográficas

  1. Aeberg E. Resistance Training Instructor. 2ª. Ed. Champaign: Human Kinetics;2007
  2. Barbanti, W. Formação do Esportista. Ed. Manole: São Paulo, 2005.
  3. Boyle M. Functional Training for Sports. Champaing, IL: Human Kinetics, 2004.
  4. Check, P. Scientific Core Conditioning. Check Institute: Vista (CA), 2005.
  5. Guiselini, M. e Guiselini, R. Treinamento MultiFuncional. Instituto Mauro Guiselini: São Paulo, 2016
  6. Hamill, J. e Knutzen, M.K. Bases Biomecânicas do Movimento Humano. 2ª. Ed. Editora Manole: São Paulo, 2008.
  7. Jarmey, C. Músculos: uma abordagem concisa. Editora Manole. São Paulo, 2008.
  8. Lippert, L.S. Cinesiologia Clínica e Anatomia. 4ª. Ed. Editora Guanabara Koogan: Rio de Janeiro, 2006.
  9. Magil, R.A. Aprendizagem Motora: Conceitos e Implicações. Editora Edgard Blucher Ltda. São Paulo, 1984.

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